segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Caixote da Areia (Perfumada)



Estou sempre a escrever “a minha casa” e sobre “os caixotes da minha casa”, porém, todos os que já vieram cá a casa puderam constatar que a casa não é minha.
Não. Não pensem já na piada de que é minha e da Caixa Geral de Depósitos. Não é disso que se trata aqui hoje (Se bem que daria papel para texto.).
A verdadeira dona da minha casa chama-se Miaulina.
É uma gatinha calminha, doce, ternurenta e até submissa, quando está a dormir.
Nas outras ocasiões todas, dá ares de aristogata, enfadada e refilona.
É um caixote maravilhoso cheio de momentos embaraçosos, divertidos e assustadores que eu mimo com carinho e muito respeitinho há sete anos.
De raça “vaca malhada”, filha de cão e neta de leão, é a coisa mais gordinha e fofinha cá do bairro.
E se é verdade que não gosta de crianças, mãos ao pendurão e animais (todos os outros), também é verdade que tem um refinado gosto por sapatos caros e por ameaçar as pombas que se atrevem a poisar na varanda.
Lembro-me com nostalgia de um certo jantar em que no meio de uma multidão de comensais, escolheu os sapatos Camper novinhos de um rapaz Erasmus, de um país daqueles onde se fala com uma batata quente na boca, para estraçalhar. O rapaz simpático, e até diria tímido por se encontrar longe da terra natal, sorria com um ar amarelado e de terror. Ofereci-me para lhe pagar uns sapatos novos em Português correcto, mas ele não me entendeu.
Ou daquele dia de sol em que a bicharoca se convenceu que um helicóptero que andava a sobrevoar a zona era uma pomba. Partiu um castiçal e mais umas coisitas na perseguição. Mas o mais trágico do episódio foi não ter alcançado a presa. Deprimiu uma semana. Nunca mais olhou para as pombas da mesma forma.
Possui também um sistema de alerta que é activado pelo clique da abertura de uma lata de atum, pelo barulho das batatas fritas ou dos amendoins com mel dentro do saco e pelo abanar da caixa dos biscoitos de gato em forma de cabeça de gato. Esteja onde estiver, aparece em milésimos de segundo.
Tem um problema com o cheiro da valeriana, que me preocupou bastante em tempos. Mas, quando li as memórias do Gabriel Garcia Marquez esclareci que todos os gatos ficam perturbados com a valeriana. Foi quando desisti de a levar a um psicólogo de gatos e guardei o meu chá numa lata em cima do móvel mais alto cá de casa.
Como todos os bichos com personalidade forte, é dependente de comida, areia limpa, roupa por passar a ferro acabadinha de secar para espalhar os pêlos e do coelho verde de peluche (falecido há anos e que já se encontra em avançado estado de decomposição) que nos acompanha de casa em casa.
Como qualquer gato adora tomar banho e ser aspirada.
Como qualquer gato tem momentos em que faz ronrom. Mas isso é só para mim.

domingo, 29 de novembro de 2009

Caixote das mensagens(das que podemos mostrar)

Para a minha melhor vizinha (com desejo profundo de que a nova etapa seja muito feliz).

“Daqui a cinco minutos no Largo.”
“Tens filmes novos? Passo aí e mandas pela varanda.”
“Café na Botica II?”
“Vais ver a Miau?”
“Emprestas o aspirador?”
“Cheguei a casa. Dorme bem.”
“O meu mano ainda está aí?”
“O teu mano deixou cá a carteira.”
“Estou a jantar na Botica. Queres vir?”
“Emprestas o grelhador?”
“Copinho no Bairro?”
“O que é que a minha amiga anda a fazer?”
“Vem cá a casa. Bebemos um chá.”
“Tem calma. Vou já aí ter.”
“Vens para casa? Cafézinho no Largo?”
“Pequeno-almoço amanhã?”
“Sim, sim, passo aí e assobio.”
“Jolinha na esplanada?”
“Banho rápido e vou aí ter.”
“É preciso levar alguma coisa?”
“Cerveja do indy.”
“Janta cá em casa.”
“Tens aí migras?”
“A janta está pronta.”
“Elevation, baby!”
“Bju Laru”
“Beijinho para a menina mailinda do Conde Barão.”
“On the road”

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

domingo, 15 de novembro de 2009

Caixote da banda da minha vida

Depeche Mode
Lisboa 14/11/2009


Um cheirinho de uma noite devota. Estivemos lá.




Caixote das sobrancelhas

Para a Vó Piedade.


Ensinaste-me a fazer broa, benzida em cruz para levedar bem. Aprendi contigo o sabor do caldo de couves feito na panela de ferro da lareira, do bacalhau frito, dos torresmos, das batatas fritas em azeite, daquelas flores do campo, que eu não me lembro agora do nome, mas que se chupam e são docinhas...Aprendi o prazer de enterrar as mãos no sal grosso da salgadeira, no saco de milho amarelinho, de fazer festas aos coelhos pequeninos, de caminhar descalça na terra acabadinha de regar. Contigo também fiquei a saber que a estrepoeja serve para puxar o pus das feridas, que mexer no lume faz os meninos fazer chichi na cama, que quando uma coisa desaparece basta dar um nó na ponta esquerda do avental que se encontra logo, que quando há trovoada se queima ramo bento para proteger dos raios e que quando a minha perna dói é porque a lua anda às voltas.
Que bem que se cresce no campo com uma avó sábia e doce.
De todas as coisas que me deste, as sobrancelhas são as que vou transportar comigo para sempre. Pretas, fartas e compridas. Indomáveis, apesar de todas as novas tecnologias que existem hoje em dia à disposição da estética feminina. Mas não faz mal, porque são iguais às tuas. E são nossas.
Li uma citação qualquer que diz mais ou menos que as pessoas só morrem quando morre a última pessoa que gosta delas.
Por mim, vais continuar a viver muitos anos.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Caixote da vergonha

Quem não respeita a morte, não se deve respeitar muito.

Hoje não há caixote, há um muro tombado.


Lembro-me que andava no Liceu. Lembro-me dos meus pais a olharem contentes para a televisão. Lembro-me da minha irmã não ligar nenhuma porque era pequenita. Lembro-me das pessoas a partirem um muro. Lembro-me das pessoas a rir, chorar, beijar, abraçar e pular. Felizes.
Também me lembro de ter pena de estarem a estragar os desenhos bonitos que estavam no muro.


Lembro-me de no ano passado estar com gente muito muito muito amiga, sentada em Unter den Linden a pensar como gostaria de ter lá estado naquele dia.

Não foi naquele dia, mas estivemos lá noutro.

E tudo isso graças ao dia em que o muro caiu.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Caixote do Lobo



António Sérgio
1950-2009

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Caixote da Faculdade

Há onze anos atrás, andava no último ano da faculdade. Vagueava por lá um professor lunático e fascinante, que, depois da minha professora da escola primária (a minha querida mãe), foi quem mais me ensinou sobre a escrita.
Chama-se Luís Carmelo. Penso que ainda anda por lá a dissertar sobre os mistérios da Semiótica, o enredo dos filmes e a arte de escrever.
Hoje, tirei ali do móvel a pasta (já tenho móveis para guardar pastas) das aulas dele, que guardo como uma preciosidade.
Ri. Sorri. Suspirei. Voltei a rir. Voltei a sorrir. Suspirei.
Pensei se devia publicar aqui um dos textos que escrevi nas aulas dele. Resolvi transcrever um texto pequenino da aula em que ele queria ensinar a "transformar abstracções na nossa própria linguagem".
Escrevi assim:

Os anjos são crianças que nunca vão crescer. São azuis clarinhos para se confundirem com o céu e não os vermos quando nos protegem.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Caixote dos fantasmas.

"Na criação de um anúncio fantasma, a liberdade do criador de anúncios se aproxima da liberdade do artista. A ausência da pressão do tempo e a inexistência da visão crítica das pesquisas ou de quem encomendou o anúncio torna o anúncio fantasma uma peça de arte publicitária pura. Dá a todos a oportunidade de ver como seria a publicidade se ela não fosse uma expressão da arte, da ciência e da técnica de vender produtos."
Celso Japiassu

Não sendo uma obra de arte, é um dos meus anúncios fantasmas.




quarta-feira, 23 de setembro de 2009

De um caixote luso-belga.

Lenga-lenga


Porque choras, meu menino?
Por aquilo que imagino.

O que está atrás da cortina?
Uma boneca assassina.
O que está atrás da porta?
Uma bruxa com a espinha torta.
O que está debaixo da cama?
Um alfinete-de-ama.
Quem te está a pôr a mão?
Um bicho papão.

Se acenderes a luz,
Será que ele cai ao chão?

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Regresso

Sim, sim, é um texto lamechas o que se segue.

Quando abri este blogue, não sabia que o textinho introdutório era tão premonitório. Eu não sabia que se ia iniciar um longo período de caixotes a caír, com as coisas a saltarem cá para fora em total desordem, deixando tudo muito baralhado.
Hoje é o primeiro dia em que escrevo desde que uma tempestade entrou na minha vida. Estou um bocadinho nervosa e a medir bem as palavras para não me exceder. E sim, confesso, estou até a choramingar. Voltei a escrever! (sim, com o publicitário e irritante ponto de exclamação e tudo!)
Não vou fazer um relato. Vou só dizer que passei e passo por transformações que não queria, mas que estão aqui. Não posso fazer nada para as evitar. Tento aceitá-las e aproveitar para crescer. Dores de crescer, é o que é. Tinha tudo mal empacotado.
E agora, quero encontrar caixotes e caixinhas bonitas para o meu armazém. Ando à procura nas montras das lojas.
No meio de toda esta confusão, descobri um contentor, daqueles que os camiões grandes carregam, sólido e robusto. Quando o abri para ver encontrei a minha família e os meus amigos. Ninguém teve medo da tempestade com chuva gorda e nuvens pretas que eu trazia. Algumas destas pessoas tão maravilhosas, revezaram-se e seguraram com força um guarda-chuva por cima de mim. A chuva entrava na mesma,mas não me batia com tanta força. Nunca estive sózinha. Não sei como lhes agradecer. Mas agradeço sempre que posso e como posso.
E agora, apesar dos caixotes ainda estarem muito molhados, já consigo ver algumas coisas boas e más que estavam lá guardadas e eu tinha que tirar ou arrumar de maneira diferente.
No centro do armazém há um caixote muito confuso. Ando a evitá-lo. Tem escrito MUITO FRÁGIL por fora. Só sei que ainda não sei como o arrumar.
As obras da minha casa terminaram.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Saida da caixa.

Estou em casa.

Com empenho de ir para a rua sem sair do sofá. Estou cá.

Bates à porta. Eu não estou. Tocas a campainha. Eu não vou.

Deves ser tu.

Fico aqui quietinha com o som do meu mutismo. Fico cá.

Conto os passos do sofá à porta. Tão longe. Talvez vá.

E se és mesmo tu? Já lá vou.

Só fica em casa à espera, quem não vive lá.

sábado, 4 de abril de 2009

Caixote do coração

Quando eu era muito pequena, a minha mãe era a moderadora entre as minhas questões existenciais, o resto do mundo e os seus arredores. Eu perguntava e ela explicava o universo todo.
Lembro-me bem de ficar assustada com o barulho das ambulâncias. Fazia-me uma aflição danada. De mão na mão dada pela minha mãe, seguiamos pela rua, até que chegava aquele tinoni aterrador. Aflita. Perguntava-lhe então quem ia na ambulância. Ela, com os seus calmantes olhos verdes, olhava-me e explicava: “É um bebé que vai nascer. Está com pressa de sair cá para fora.” Satisfeita a minha curiosidade, lá seguiamos o nosso caminho. Eu contente. Ela pacificada.
Passaram os anos e eu continuo a ficar aflita com aquele som agressivo e triste. A verdade é que penso sempre em bebés. E fico mais calma. Desejo uma hora curtinha à futura mãe.
Há explicações que fazem sentido. E que ficam. Mesmo que só para mim. Mesmo que só para nós.

Parabéns.

terça-feira, 31 de março de 2009

De um caixote muito antigo.

História do quadradinho

É um quadradinho pequenino que me está a pôr nervosa. Quatro riscos de caneta de feltro preta inscritos numa folha de papel muito branca. Preferia pegar nele e enchê-lo de palavras. Era mais simples. Mas alguém me pediu que o enchesse de imagens.
Olho-o de frente. Posso fazer nele um X e passa a ser um voto. Posso fazer um V e torna-se num envelope. Com um pontinho no meio passa a ter um umbigo. Com um traço perpendicular pode ser uma sanduíche cortada ao meio. Com muitas riscas verticais passa a ser um código de barras.
Se eu lhe desenhar um risco vertical mesmo ao centro, passa a ser uma janela. Uma janela pode ser interessante. Posso espreitar pela vidraça e ver que lá fora deve estar frio. Está vento. Descubro isso por causa dos risquinhos que desenho no ar. O céu está cinzento-azulado, o prédio em frente tem uma luz acesa no primeiro andar.
Se eu abrir a janela, posso debruçar-me neste lindo peitoril negro e ver as pedrinhas pequeninas com que a rua é calcetada. Posso também regar estas flores deste vaso que está aqui pendurado ou cheirá-las. Mas para isso, tenho que desenhar um puxador. Pronto, já está.
Olha, vem lá um rapaz. Caminha calmamente e observa a rua. Traz um belo laço ao pescoço e assobia uma canção antiquada. Parece estar à procura de algum sitio. Deve vir visitar alguém. Aproxima-se mais e olha para mim.
Dá-me os Bons-dias. Respondo? “Bom dia.” Agora fixa o seu olhar em mim como se tivesse encontrado aquilo que buscava. E eu tenho a estranha sensação de que quem encontrou fui eu. Começo a não gostar disto. No principio era eu quem estava a definir esta história. Vou apagar a janela e pensar noutra imagem com menos aberturas.
Pego na borracha e esfrego-a no papel. Só que a janela continua aqui. E o rapaz que me encontrou, ou melhor, que eu encontrei, ou melhor, já nem sei, continua ali a olhar para mim.
Mete a mão no bolso das calças. Tira de lá uma folha de papel muito branca com quatro riscos de caneta de feltro nela inscritos. É outro quadradinho. Estica o braço desde lá de baixo até aqui à janela do segundo andar e dá-me. Sorri-me e diz-me: “É para continuar a história”.

sábado, 28 de março de 2009

!

Meu Querido Padre Ilídio:

Chamo-o Padre Ilídio porque para mim vai ser sempre assim. Quando há mais de 25 anos foi chamado a cuidar da paróquia de Torredeita, não suspeitámos que ia iniciar uma revolução naquela terra tão conservadora. Habituados que estávamos a um padre à moda antiga, do qual eu tinha medo, fomos todos surpreendidos por uma pessoa genuína e simples. Preocupou-se com as pessoas, dormiu sem cobertor no Inverno porque o deu a alguém que precisava, escandalizou os paroquianos por responder à pergunta “Vinho branco ou tinto?” com um bem-humorado “Cheinho!”.
Fundou o Agrupamento de Escuteiros 749 que fez no dia 25 de Março 25 anos e é hoje um dos pilares da freguesia e ao qual eu vou pertencer para sempre.
Uniu as pessoas à volta do adro, com novas perspectivas. Mais alegria, mais ajuda, mais comunidade.
Levou o João T. para a Casa Paroquial e tornou-o numa pessoa acarinhada por todos.
As homilias deixaram de ser chatas para passarem a ser verdadeiras lições de humanidade. Sempre com voz e palavras ternas.
As crianças passaram a ser crianças. Já não tinham que estar em sentido na catequese e na missa.
As mulheres já não eram censuradas por usar um decote, nem ninguém era pessoalmente alertado para os seus pecados em plena missa dominical.
E tantas outras coisas, que eu não me lembro agora porque era pequena, mas que me fizeram gostar muito do Sr. Padre.
E, se no início, muitos ficaram de pé atrás, aos poucos, aquelas cabeças foram-se abrindo e entendendo o que queria expressar. Foram ficando sem medo da figura do Sr. Prior. Afinal, ele era um amigo.
Depois, veio o dia em que foi embora. Ainda me lembro de ir com o meu pai despedir-me ao fim da missa e ficar muito triste. Eu sabia que ia para Roma, para ajudar melhor, mas eu não queria. Ninguém queria.
Porém, os alicerces que tão bem fundou ficaram lá. Quem chegou para o substituir soube preservar a obra que tinha feito e Torredeita é hoje uma terra mais arejada em muitos sentidos.
Queria dizer-lhe estas coisas todas, porque sempre senti que era um revolucionário tranquilo. Que sabe que há coisas a mudar, que as vai tentar mudar, mas que sabe que têm que ser transformadas com calma. Pacificamente.
Quando soube que ia ser Bispo de Viseu, fiquei esperançosa. Pensei que as coisas iam mudar no Cavaquistão alaranjado, sempre a disfarçar mal o seu lado saudosista dos tempos do regime antigo.
E hoje, quando cheguei ao quiosque dos jornais aqui do bairro, os meus olhos marejaram. “Bispo de Viseu defende uso do preservativo”. Diz assim no DN “ D. Ilídio Leandro diz que as pessoas são moralmente obrigadas a não transmitir a sida através da relação sexual (...) O bispo diz não ter medo da polémica que a sua afirmação vai causar.”.
Não é que me surpreenda. Mas enche-me de orgulho.
E, se ali num daqueles caixotes há-de estar um lenço vermelho com a insígnia dos Escuteiros de Torredeita, achei que era a altura de o desencaixotar mentalmente, pô-lo ao pescoço e dizer-lhe:

“Sempre alerta.”

sexta-feira, 27 de março de 2009

Nos copos.

Um copo vazio não é tema de texto. Quando muito é um pretexto para se encher e beber. Mas texto, não. Porque não há nada para dizer sobre ele. É um campo por preencher. Um espaço oco cheio de presença nenhuma. Uma fronha à espera de enchimento. Pode ser cheio ou meio. Mas, sem nada, não há nada que se lhe diga. Nem que se lhe conte. Não conta. Não há letra que lhe valha. Não há palavra que o anime. Não há boca que o queira. Nem mão que o aperte. Não há quem o brinde. Nada de nada. É um vaso sem planta. Desamparo raso de ar.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Desencaixotada

Escadinhas Lisboetas



Lisboa não são só colinas. Lisboa são escadas, escadinhas, escadarias e escadotes. São saltinhos nas ruelas. São corrimões envelhecidos.
Passos apressados nas ruas estreitas. Saltos altos que não cabem bem em todos os degraus desta vida errante que se faz na cidade.
Escadinhas com varandas e janelas, cheias de roupa a perfumar o ar. Já não é o Omo nem o sabão azul. Agora é cheiro de panos acabados de sair da máquina de lavar. E que difícil que é, tentar equilibrar o pé a olhar para o ar. A descer todos ajudam, mas a subir, só mesmo Santo Antoninho. Na Bica é mesmo a doer. E no Castelo, Deus nos dê ar para respirar antes de lá chegar.
Gosto das escadas dos prédios. De madeira ou pedra dura. Gosto quando as escadas cheiram bem. Quando por lá passou alguém com um balde de água que mata as bactérias e é cheirosa. Ou quando alguém saiu de casa perfumadinho pela manhã, deixando um rasto de mistura de essências, refinado ou não. Que bem que cheiram os lisboetas!
Ou as escadas de madeira amareladas por um pó que eu não sei o nome. Mas que mania esta. Mas que bela mania. São aquelas cores que Lisboa tem, mas que nem notamos.
Degrau a degrau, a algum lado se há-de chegar. À Baixa ou ao Largo da Graça. À Lapa. À socapa, sempre em sobe e desce. Sempre com pressa. Quanto mais depressa mais se perde o vagar.

caixote inaugural

Hoje é um dia histórico. As obras finalmente começaram. Agora que ninguém tem a certeza absoluta de que deitar aquela parede abaixo vai ser seguro para a estrutura daquele prédio pombalino e que a licença para pôr o contentor na rua ainda não chegou, parece-me a altura ideal para começar.
E eu tomei a decisão acertada e pirei-me para longe.
Mas é uma fuga muito temporária. Em breve lá estarei a ver os meus empoados caixotes. Tomei também a gloriosa decisão de ficar a viver lá bem no centro de produção de pó. Recuso-me a deixar os meus caixotes.
A verdade é que me acostumei rapidamente àquele lugar. O meu bairro. À falta de caixotes do lixo que nos obriga a deixar os sacos no passeio, aos becos malcheirosos, aos carochos do café da esquina, aos adolescentes a beber na rua até às cinco da manhã, aos adolescentes a cantar na rua até às cinco da manhã, aos adolescentes a urrar na rua até às cinco da manhã, aos adolescentes a vomitar na rua até às cinco da manhã, enfim, um bairro bem frequentado e pacífico.
E então pensei que se calhar me aguento à bronca de viver durante uns tempos no meio da confusão das lixadeiras e das tintas. Vamos ver até quando eu resisto.


Não era propriamente com um texto assim que eu queria começar o meu blog. Mas ando cansada. Cansada demais para escrever e cansada de olhar para o blog sem nada.