terça-feira, 31 de março de 2009

De um caixote muito antigo.

História do quadradinho

É um quadradinho pequenino que me está a pôr nervosa. Quatro riscos de caneta de feltro preta inscritos numa folha de papel muito branca. Preferia pegar nele e enchê-lo de palavras. Era mais simples. Mas alguém me pediu que o enchesse de imagens.
Olho-o de frente. Posso fazer nele um X e passa a ser um voto. Posso fazer um V e torna-se num envelope. Com um pontinho no meio passa a ter um umbigo. Com um traço perpendicular pode ser uma sanduíche cortada ao meio. Com muitas riscas verticais passa a ser um código de barras.
Se eu lhe desenhar um risco vertical mesmo ao centro, passa a ser uma janela. Uma janela pode ser interessante. Posso espreitar pela vidraça e ver que lá fora deve estar frio. Está vento. Descubro isso por causa dos risquinhos que desenho no ar. O céu está cinzento-azulado, o prédio em frente tem uma luz acesa no primeiro andar.
Se eu abrir a janela, posso debruçar-me neste lindo peitoril negro e ver as pedrinhas pequeninas com que a rua é calcetada. Posso também regar estas flores deste vaso que está aqui pendurado ou cheirá-las. Mas para isso, tenho que desenhar um puxador. Pronto, já está.
Olha, vem lá um rapaz. Caminha calmamente e observa a rua. Traz um belo laço ao pescoço e assobia uma canção antiquada. Parece estar à procura de algum sitio. Deve vir visitar alguém. Aproxima-se mais e olha para mim.
Dá-me os Bons-dias. Respondo? “Bom dia.” Agora fixa o seu olhar em mim como se tivesse encontrado aquilo que buscava. E eu tenho a estranha sensação de que quem encontrou fui eu. Começo a não gostar disto. No principio era eu quem estava a definir esta história. Vou apagar a janela e pensar noutra imagem com menos aberturas.
Pego na borracha e esfrego-a no papel. Só que a janela continua aqui. E o rapaz que me encontrou, ou melhor, que eu encontrei, ou melhor, já nem sei, continua ali a olhar para mim.
Mete a mão no bolso das calças. Tira de lá uma folha de papel muito branca com quatro riscos de caneta de feltro nela inscritos. É outro quadradinho. Estica o braço desde lá de baixo até aqui à janela do segundo andar e dá-me. Sorri-me e diz-me: “É para continuar a história”.

sábado, 28 de março de 2009

!

Meu Querido Padre Ilídio:

Chamo-o Padre Ilídio porque para mim vai ser sempre assim. Quando há mais de 25 anos foi chamado a cuidar da paróquia de Torredeita, não suspeitámos que ia iniciar uma revolução naquela terra tão conservadora. Habituados que estávamos a um padre à moda antiga, do qual eu tinha medo, fomos todos surpreendidos por uma pessoa genuína e simples. Preocupou-se com as pessoas, dormiu sem cobertor no Inverno porque o deu a alguém que precisava, escandalizou os paroquianos por responder à pergunta “Vinho branco ou tinto?” com um bem-humorado “Cheinho!”.
Fundou o Agrupamento de Escuteiros 749 que fez no dia 25 de Março 25 anos e é hoje um dos pilares da freguesia e ao qual eu vou pertencer para sempre.
Uniu as pessoas à volta do adro, com novas perspectivas. Mais alegria, mais ajuda, mais comunidade.
Levou o João T. para a Casa Paroquial e tornou-o numa pessoa acarinhada por todos.
As homilias deixaram de ser chatas para passarem a ser verdadeiras lições de humanidade. Sempre com voz e palavras ternas.
As crianças passaram a ser crianças. Já não tinham que estar em sentido na catequese e na missa.
As mulheres já não eram censuradas por usar um decote, nem ninguém era pessoalmente alertado para os seus pecados em plena missa dominical.
E tantas outras coisas, que eu não me lembro agora porque era pequena, mas que me fizeram gostar muito do Sr. Padre.
E, se no início, muitos ficaram de pé atrás, aos poucos, aquelas cabeças foram-se abrindo e entendendo o que queria expressar. Foram ficando sem medo da figura do Sr. Prior. Afinal, ele era um amigo.
Depois, veio o dia em que foi embora. Ainda me lembro de ir com o meu pai despedir-me ao fim da missa e ficar muito triste. Eu sabia que ia para Roma, para ajudar melhor, mas eu não queria. Ninguém queria.
Porém, os alicerces que tão bem fundou ficaram lá. Quem chegou para o substituir soube preservar a obra que tinha feito e Torredeita é hoje uma terra mais arejada em muitos sentidos.
Queria dizer-lhe estas coisas todas, porque sempre senti que era um revolucionário tranquilo. Que sabe que há coisas a mudar, que as vai tentar mudar, mas que sabe que têm que ser transformadas com calma. Pacificamente.
Quando soube que ia ser Bispo de Viseu, fiquei esperançosa. Pensei que as coisas iam mudar no Cavaquistão alaranjado, sempre a disfarçar mal o seu lado saudosista dos tempos do regime antigo.
E hoje, quando cheguei ao quiosque dos jornais aqui do bairro, os meus olhos marejaram. “Bispo de Viseu defende uso do preservativo”. Diz assim no DN “ D. Ilídio Leandro diz que as pessoas são moralmente obrigadas a não transmitir a sida através da relação sexual (...) O bispo diz não ter medo da polémica que a sua afirmação vai causar.”.
Não é que me surpreenda. Mas enche-me de orgulho.
E, se ali num daqueles caixotes há-de estar um lenço vermelho com a insígnia dos Escuteiros de Torredeita, achei que era a altura de o desencaixotar mentalmente, pô-lo ao pescoço e dizer-lhe:

“Sempre alerta.”

sexta-feira, 27 de março de 2009

Nos copos.

Um copo vazio não é tema de texto. Quando muito é um pretexto para se encher e beber. Mas texto, não. Porque não há nada para dizer sobre ele. É um campo por preencher. Um espaço oco cheio de presença nenhuma. Uma fronha à espera de enchimento. Pode ser cheio ou meio. Mas, sem nada, não há nada que se lhe diga. Nem que se lhe conte. Não conta. Não há letra que lhe valha. Não há palavra que o anime. Não há boca que o queira. Nem mão que o aperte. Não há quem o brinde. Nada de nada. É um vaso sem planta. Desamparo raso de ar.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Desencaixotada

Escadinhas Lisboetas



Lisboa não são só colinas. Lisboa são escadas, escadinhas, escadarias e escadotes. São saltinhos nas ruelas. São corrimões envelhecidos.
Passos apressados nas ruas estreitas. Saltos altos que não cabem bem em todos os degraus desta vida errante que se faz na cidade.
Escadinhas com varandas e janelas, cheias de roupa a perfumar o ar. Já não é o Omo nem o sabão azul. Agora é cheiro de panos acabados de sair da máquina de lavar. E que difícil que é, tentar equilibrar o pé a olhar para o ar. A descer todos ajudam, mas a subir, só mesmo Santo Antoninho. Na Bica é mesmo a doer. E no Castelo, Deus nos dê ar para respirar antes de lá chegar.
Gosto das escadas dos prédios. De madeira ou pedra dura. Gosto quando as escadas cheiram bem. Quando por lá passou alguém com um balde de água que mata as bactérias e é cheirosa. Ou quando alguém saiu de casa perfumadinho pela manhã, deixando um rasto de mistura de essências, refinado ou não. Que bem que cheiram os lisboetas!
Ou as escadas de madeira amareladas por um pó que eu não sei o nome. Mas que mania esta. Mas que bela mania. São aquelas cores que Lisboa tem, mas que nem notamos.
Degrau a degrau, a algum lado se há-de chegar. À Baixa ou ao Largo da Graça. À Lapa. À socapa, sempre em sobe e desce. Sempre com pressa. Quanto mais depressa mais se perde o vagar.

caixote inaugural

Hoje é um dia histórico. As obras finalmente começaram. Agora que ninguém tem a certeza absoluta de que deitar aquela parede abaixo vai ser seguro para a estrutura daquele prédio pombalino e que a licença para pôr o contentor na rua ainda não chegou, parece-me a altura ideal para começar.
E eu tomei a decisão acertada e pirei-me para longe.
Mas é uma fuga muito temporária. Em breve lá estarei a ver os meus empoados caixotes. Tomei também a gloriosa decisão de ficar a viver lá bem no centro de produção de pó. Recuso-me a deixar os meus caixotes.
A verdade é que me acostumei rapidamente àquele lugar. O meu bairro. À falta de caixotes do lixo que nos obriga a deixar os sacos no passeio, aos becos malcheirosos, aos carochos do café da esquina, aos adolescentes a beber na rua até às cinco da manhã, aos adolescentes a cantar na rua até às cinco da manhã, aos adolescentes a urrar na rua até às cinco da manhã, aos adolescentes a vomitar na rua até às cinco da manhã, enfim, um bairro bem frequentado e pacífico.
E então pensei que se calhar me aguento à bronca de viver durante uns tempos no meio da confusão das lixadeiras e das tintas. Vamos ver até quando eu resisto.


Não era propriamente com um texto assim que eu queria começar o meu blog. Mas ando cansada. Cansada demais para escrever e cansada de olhar para o blog sem nada.