terça-feira, 26 de outubro de 2010

Cara

Quem vê caras não vê corações. Ou, diria o Sérgio Godinho “quem não vê caras não vê corações”.


Toda a gente que circula em Lisboa conheceu certamente o Senhor do Sinal, ou o Homem sem Rosto que costumava estar no Rossio a pedir esmolas. A natureza pode ser brutal. O senhor é um ser humano e todos o olhávamos como um monstro.
Tenho uma amiga que me contou que um dia se sentou à frente dele no metro. Olhou-o por uns segundos e depois teve que desviar o rosto. Disse-me que saiu do metro na paragem a seguir porque estava a desfazer-se em lágrimas. Tentou imaginar como seria a vida dele. Sem ninguém que lhe quisesse fazer uma festa no rosto que não tinha, sem quem lhe enxugasse as lágrimas, sem espaço por onde sorrir. E sem vontade de sorrir, provavelmente.
A mim sempre me preocupou a felicidade dele. Sempre achei que podemos ser felizes sem uma mão, sem uma perna, sem um rim, sem juízo, com juízo a mais, mas com aquele rosto inexistente, aquela massa informe por onde os seus olhos espreitavam, nunca consegui conceber a hipótese de felicidade ou de paz interior. E depois as pessoas parvas ou desprevenidas a desviarem o olhar dele ou a fazerem expressões de espanto quando o viam, adolescentes histéricas com gritinhos, gente com idade para ter bom senso a gritar-lhe para desaparecer, vi eu mais do que uma vez. Posso estar equivocada. Aliás, espero estar. Mas não consigo acreditar que o senhor fosse feliz.


O senhor chama-se José Mestre. No dia 19 deste mês foi operado em Chicago e retiraram-lhe 5,5Kg de tumor do rosto. Cinco quilos e meio.
Em breve vai voltar a Portugal com um rosto.
Fiquei feliz por saber.

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